Prezados Enxadristas e comunidades,
“Aprendi como rainha e quando
me foi apresentada a anotação, seu nome muda para dama.”
Um interessantíssimo artigo
sobre a origem da peça Rainha no jogo de xadrez, sua aparição como manifesto da
cultura ocidental e como referência ao empoderamento, inequívoco, do universo
feminino.
Boa leitura a todos!
Que a força esteja conosco!
Fábio
da Rocha
Presidente
do Clube de Xadrez Scacorum Ludus
por Sergio Ernesto Negri
05/03/2021 - É sabido que nos
diversos proto-xadrez da Índia, Pérsia e do mundo muçulmano, aqueles que foram modeladores
do xadrez definitivo, não foi incluída nenhuma peça que se referisse ao universo feminino. Neles, era o
vizir quem acompanhava o rei na posição inicial, a quem devia
proteger. Aliás, esse conselheiro do monarca era o protótipo da cultura
oriental. Artigo de Sergio Ernesto Negri. | Imagem: Traçado de
raio ChessBase. | Tradução: Fábio da Rocha: https://es.chessbase.com/post/la-pieza-de-la-reina-aparece-en-el-ajedrez-primera-parte-articulo-por-sergio-ernesto-negri
Sabe-se também que o shatranj
árabe e o čatrang persa entraram na Europa pelos extremos (através do Império
Bizantino e das penínsulas ibéricas), através da Itália (especialmente através
da ilha da Sicília, mas também de sua porção continental meridional), e cruzando
o Rio Volga na Rússia (na direção sul-norte). A partir destes pontos, em
forma de leque, continuará a expandir-se progressivamente pela Europa, onde
adquirirá o seu formato definitivo.
Nesse processo de difusão,
assimilação e modernização, o surgimento da figura da rainha em um jogo que
originalmente não a contemplava terá um aparecimento decisivo e,
posteriormente, postulará a ampliação de sua capacidade de se mover no
tabuleiro (o que também aconteceu com o bispo), momento a partir do qual o
xadrez adotará seu perfil definitivo.
Os historiadores sempre se
perguntaram quando surgiu essa obra com rosto de mulher, em que circunstâncias,
em que horas, em que lugar específico. Uma pergunta que ainda não tem, e talvez
nunca tenha, uma resposta conclusiva. O que não impede uma tentativa de
respondê-la.
Além disso, ao se investigar o
assunto, assim como quando a origem do xadrez é analisada simetricamente,
costuma-se perceber a presença de tendências ao fascínio nacional ou de
resposta inequívoca, dificultando uma visão mais holística do problema. Em
nossa opinião, em ambos os casos, e quase sempre, mais do que apostar na
exclusão de visões que conduzem os respectivos processos de gênese a eventos
específicos, o fenômeno deve ser concebido como um processo. Com o qual deve
prevalecer a busca sistemática, o reconhecimento das contribuições de diversas
fontes, enfim, à humildade e não a respostas fáceis ou sacralizadas.
Claro, de uma perspectiva de
pesquisa, uma verdade histórica que relata efeitos cumulativos, graduais, com
influências e contribuições sucessivas, é mais difícil e menos tratável, ao
invés de ir para a resposta geralmente mais simples de atribuir tudo à entidade
em particular localizando-o em um determinado tempo e lugar.
Do nosso lado, e esse será em
todo o caso o viés assumido e a própria deformação conceptual, apostaremos
sempre numa visão geral que entende que a Humanidade chega às suas descobertas
por contribuições civilizatórias coincidentes e complementares.
Em qualquer caso, se esta
concepção pode eventualmente ser falível ao analisar um fenômeno cultural
específico, ela de forma alguma deixa de ver a difusão ao longo do tempo desse
evento criado. Especificamente: de que serviria alguém pensar em criar a
figura da rainha do xadrez se, mais tarde, essa invenção, esse elemento consagrador,
não é geralmente aceito por quem joga depois e pela cultura como um todo?
Em todo caso, é preciso contar
com fontes que pareçam tão confiáveis quanto possível (mesmo na convicção de
que o conhecimento é uma construção coletiva e falível), e não nas sensações.
São fenômenos complexos de
difícil apreensão e reconhecimento, e a possibilidade de que essas mesmas
fontes possam estar contaminadas por erros ou miopia de perspectiva em sua
origem. Mas valerá a pena tentar fazê-lo, para não cair no plano simples
das opiniões ou percepções acríticas.
Nesse sentido, basearemos esta
pesquisa em referências a expressões da literatura, não necessariamente a
especializada (que aparece depois e em todo caso é complementar, mas nunca
exclusiva), e na constatação de imagens muito antigas, que remetem à peça da
rainha.
Sobre esses eixos será
construído o presente documento com o qual tentamos nos aproximar para dar uma
resposta àquela pergunta sobre o momento em que a peça da rainha apareceu no
jogo milenar.
Em teoria, e antes de passar
pelos elementos concretos de análise, teria sido muito plausível supor que nos
atuais territórios de Espanha e Itália (devido à influência árabe, nomeadamente
no primeiro caso, visto que o domínio muçulmano foi bastante alargado no
tempo), ou da Grécia (por resquícios da cultura bizantina), ou na Rússia (por
aquela linha de entrada do jogo seguindo o curso de um de seus principais
rios), teriam aparecido os primeiros sinais de que o antigo vizir oriental, tão pouco idiossincrático para os europeus, se
transformasse na peça mais plausível da rainha.
Porém, o veremos em detalhe,
haverá a curiosidade de que serão peças de origem nórdica que prevalecerão no
namoro em termos de presença feminina. E os que correspondem ao sul da Itália,
também muito antigos, também têm pontos de contato estreitos com a cultura
normanda. E chegando à literatura, será no coração europeu onde a rainha é
mencionada pela primeira vez no xadrez, que acontece no contexto do Sacro
Império Romano-Germânico, a partir de um poema do final do século X, que se
preserva em qual seria o seu lugar de origem, um mosteiro de uma abadia
localizada em territórios da atual Suíça.
Neste caso, como em qualquer
outro, deve-se ter em mente que a literatura pode tanto refletir uma realidade
quanto criá-la. Portanto, a inclusão daquela referência inicial à peça
feminina de xadrez, embora não seja conclusiva sobre se ela registrou um evento
que estava acontecendo, pelo menos antecipa outro que aconteceria.
Porém, sua importância se dá
por ser o primeiro registro cultural de uma situação que deverá ser aprofundada
posteriormente: o fenômeno da inclusão da rainha do xadrez em substituição ao
vizir oriental. Para ser claro, esta
é uma substituição e de forma alguma uma evolução.
Esta mudança corresponderá a
um contexto cultural em que, de forma gradual e sistemática, poderá ser
observada a presença de rainhas e outras figuras femininas de crescente protagonismo
e poder. O seu aparecimento no jogo, nestas condições, devia inevitavelmente
acontecer, para que em seu interior se refletisse, mais adequadamente, uma
sociedade mais complexa na qual, desde logo, a mulher ocupasse o seu papel, que
era notavelmente mais interessante, desde a perspectiva social e política, do
que acontecia no Oriente. Se aqui o vizir era uma figura central e a ideia de
uma soberana não existia diretamente; no Ocidente ocorreria exatamente o
fenômeno oposto.
Tiremos uma conclusão primária
inequívoca, dando lugar ao processo multicultural a partir do qual o jogo
milenar é tão idiossincrático e nutrido: o xadrez vem do Oriente; e sua
versão modernizada, com a figura prototípica da rainha (dama), corresponde ao
Ocidente. Assim, com contribuições cumulativas, foi consagrado o jogo de
tabuleiro mais fascinante que a Humanidade já deu.
A peça da rainha (regina),
conforme aludido anteriormente, aparece mencionada pela primeira vez no poema
Versus de Scachis ou Poema de Einsiedeln. Einsiedeln é uma cidade do atual
cantão suíço de Schwytz, que na Idade Média foi posto de peregrinação para e da
Itália, tendo como ponto de referência a antiga diocese alemã de Constança.
Estes são dois manuscritos
escritos em latim (M. 319 e M. 365) que se encontram na Abadia localizada
naquele local, cuja data estimada (não contém uma data formal de escrita) seria
do final do século X, correspondendo a territórios do então Sacro Império
Romano.
As menções específicas no
texto são as seguintes: In quorum medio rex et regina locantur e Nam sic
concordant: obliquo tramite, desit Ut si regina, hic quod et illa queat.
É claro que a rainha acompanha
o rei e que sua mobilidade ocorre obliquamente à casa imediatamente adjacente,
ou seja, como o vizir oriental vinha fazendo, de quem herda a posição no
tabuleiro e a forma de se mover.
A investigadora
norte-americana Marilyn Yalom (que estudou este tema como poucos e que
acompanharemos em boa parte desta viagem) especula a este respeito, de forma
muito convincente, que a incorporação desta figura feminina pode constituir uma
homenagem a algumas das protetoras desse mosteiro beneditino, Adelaide da
Itália (931-999) ou da bizantina Teófano Skleraina (960-991), respectivas
esposas dos imperadores Otto I (912-973) e Otto II (955-983).
Adelaide foi imperatriz do
Sacro Império Romano e, por diversas vezes, passou a exercer a regência daquele
poderoso Estado. Ela será, claro, a mãe de Otto II, exercendo grande influência
até que sua esposa, Skleraina, conseguiu retirá-la das rédeas do poder, tendo
até sido expulsa da corte, mas então ela vai recuperar posição, primeiro ao ser
nomeada vice-rei da Itália e, depois de ser forçada a abdicar, mais tarde será
novamente a regente de seu neto, evidenciando sua validade ao longo do tempo. É
claro que ambas as imperatrizes exerceram uma situação difícil, de modo que sua
contemplação dentro do esquema de xadrez tinha muito mais a ver do que se
continuassem a contemplar um vizir exótico que nada dizia à lógica europeia
medieval.
Poderia traçar-se, se fosse a
segunda das mencionadas o arquétipo tido à vista, a hipótese de uma influência
bizantina no território da Europa central, com a qual a pergunta adicional
também poderia ser feita, se nessa outra cultura não houvesse a peça da rainha
em seu formato, por influência de grandes personalidades do passado, como Irene
de Atenas (c. 752-803).
Essa, segundo uma lenda (não
comprovada historicamente), teria dado a Carlos Magno (c. 742-814) um jogo de
xadrez que já tinha a peça da rainha dentro e que, devido ao poderoso movimento
a ela atribuído no formato, teria motivado o imperador carolíngio a não aceitar
o convite de casamento para unir os impérios romano ocidental e oriental,
incentivado pelo papado.
Teófano, em consonância com
aquele espírito lendário, dentro do dote para o casamento imperial, incluía
precisamente peças de xadrez, jogo que era conhecido em Bizâncio pelo menos
desde o século VIII e início do século IX, segundo a célebre carta do Imperador
Nicéforo I (758-829), sucessor de Irene, a Harún al Rashid (766-809), onde
lembra que a imperatriz era considerada um peão, enquanto o califa era
reconhecido como uma qualidade superior em relação à torre.
No entanto, o jogo
provavelmente entrou naquela porção do leste europeu antes, onde era chamado de
zatrikion, dadas as intensas relações entre persas e bizantinos durante o
império sassânida e, como sabemos, no século VI entrou em Ctesifonte, sua
capital, o proto-xadrez da Índia, dando continuidade ao decisivo vetor de
difusão do passatempo, agora a partir dos territórios persas e, posteriormente,
pela mediação árabe.
O que fica claro, com o Poema
Einsiedeln, é que as denominações das peças orientais já começavam a se adaptar
às necessidades exigidas na Europa, o que era inteiramente lógico para que o
jogo pudesse ser aceito, progressivamente, como uma parábola da sociedade
medieval ocidental.
Em alguns casos, o processo de
adaptação dificilmente foi formal, como quando se mudou do Raja ou Xá para o
rei óbvio, ou quando os peões foram assimilados com a infantaria exigida em
cada batalha ou com a posição social mais humilde. Outra história será a do
cavalo que, ou pode permanecer como tal, como na tradição hispânica, ou,
minimamente, será transformado em cavaleiro, como é a regra no tratamento
anglo-saxão, passando do animal ao cavaleiro.
Para as demais peças não será
tão fácil o processo de apropriação cultural. Do carro (ou navio índio), teve
que mudar definitivamente na fortificação da torre, construção tão típica no
Medievo. O estranho para o Ocidente elefante (usado em batalhas na Índia e que
em árabe se diz literalmente al-fil, ou seja, el-elefante), teria mais
variabilidade, podendo ser o bispo no norte do continente, o corredor alemão, o
bobo francês ou o porta-bandeira italiano.
É claro que a metamorfose mais
profunda ocorre justamente no caso da peça da rainha, que herdará o assento e,
em princípio, a forma de mobilização do vizir. De fato, no poema do cantão
suíço diz-se que a cor das casas que ocupará será sempre a mesma: At via reginæ
facili racione patescit: / Obliquus cursus huic, color in erit, levando em
consideração sua mobilidade diagonal (e um passo de cada vez), como seu
antecedente oriental.
No Versus de Scachis, as peças
de xadrez são chamadas desta forma: rex (rei); regina
(rainha); curvus ou count (ancião, para se referir ao bispo; e o de curvus
é por conta das costas dobradas ao longo dos anos); eques
(cavalo); rochus ou margrave (torre); pedes (peões).
Essa menção precoce à peça da
rainha faz Yalom especular que o jogo já a incluía, por enquanto em territórios
germânicos e do norte da Itália próximos à localização do
Mosteiro. Pode-se, alternativamente, pensar que esta incorporação teve um
propósito de caráter bastante reverencial e simbólico para saudar e agradecer o
patrocínio de uma das mencionadas imperatrizes, e não tanto como uma prática
concreta.
Em princípio, somos mais
tentados a inclinar-nos para esta segunda hipótese, embora isso não impeça de
ser considerado da maior importância que, pela primeira vez na história, a peça
da rainha apareça claramente mencionada em um texto.
Em qualquer caso, o que é
realmente importante, e independentemente de se no século X se jogava ou não um
jogo de xadrez feminino é que, faltando pouco mais de um século para o segundo
milênio, havia uma tensão iniciática (deve-se acrescentar: uma vocação; uma
necessidade), para que uma obra que apelasse à feminilidade fosse incorporada
no jogo.
Versus de Scachis instala-se
como o momento preciso e precioso, no final do século X, e no seio da Europa,
em que uma peça com o rosto de uma mulher no xadrez milenar estourou, como era
de se esperar, como deveria ser...
Versus
de Scachis (c. 997) é um poema medieval sobre o jogo de xadrez escrito em latim que
foi encontrado em dois manuscritos na cidade suíça de Einsiedeln.
O poema é a primeira descrição europeia do jogo e contém a primeira referência
histórica da Dama, com movimento idêntico ao fers, e da
utilização do tabuleiro com o padrão quadriculado
empregado atualmente.